CRÓNICA DO SANTO ESPÍRITO

coelhoBarítono Coelho estava pensativo, a cabeça entre as mãos, os olhos baixos e longínquos, como se procurasse inspiração, vinda do tampo da mesa. A porta abriu-se, de modo tão subtil e pouco audível, que ele só deu pela entrada da visita, quando esta, afavelmente lhe sacudiu o ombro. Foi então que estremeceu e regressou de tão longa meditação. Era de Parco Antónius, a mão amiga.

– Algum problema, Barítono? Será que posso ajudar? Sabes que podes sempre contar comigo.

– Caro Parcos. É a imprensa, são os comentadores. Só tenho dormido à força de tomar três Valium com gasosa. Estamos a perder os jornais todos. Os angolanos só nos atacam, mesmo depois de lhes termos perdoado aquela enorme pipa de massa no caso do Banco do Santo Espírito. A Mofina amofinou-se connosco. O Bolsanamão cresceu tanto que já não consegue controlar aqueles escrivas todos e sempre teve a mania que é independente, tiques que lhe vêm ser descendente de condes e viscondes. Na televisão, ele é o Pardal de Sousa, ele é a Manuela Azeda, ele é o Pagão Feliz, ele é o Peixeiro Pereira, ela é a Temperança de Sá, para já não falar no José Trocas e no próprio Abrenúncio Costa. Nas redes sociais ele é um fartar vilanagem. Sempre que entro no facebook, com o meu perfil de “personagem fictícia”, Senhor dos Passos, fico aterrado e um dia destes, fiquei com a pulsação tão acelerada que só me apetecia era ir fumar um charro e bater com a porta. E onde estão os nossos?! Não sei. Acho que demos tanta mordomia àquela malta toda, que tínhamos na blogosfera, que agora ficámos sem tropas. Estão todos nos gabinetes, na sorna. Se eu soubesse o que sei hoje, tinham recebido à comissão e passavam recibos verdes. Era o que devíamos ter feito. Enfim, gente ingrata. Olha, estamos cercados. Mas, só pode ser manobra. Só pode ser manobra.

Parco, deixou-o discorrer, ouvindo-o atentamente. Quando ele terminou, foi dizendo:

– Mas, Barítono, manobra de quem? Com tanto favor que temos despachado, não era de estar essa gente toda a render-nos loas e encómios?!

– Parco Antónius, a única coisa grande que não despachámos a favor, foi aquele pedido do Amuado Salgado, que até quis meter ao barulho o Furão Barroso e o Zé das Moedas. Mas que diabo, aquilo já estava tão avançado que a Tia Ângela não nos deu luz verde e tivemos mesmo que fazer um Banco do Espírito Mau e um do Espírito Bom. Ou me engano muito, ou anda por aí a mão dele.

– Parco coçou a barbicha rala e ajeitou os óculos. Tinha alguma lógica, tinha. O Amuado quando se zangava era pior que jagunço à solta. Contavam-se histórias de arrepiar os pelos do peito ao mais audaz. Por fim, lá foi dizendo, em jeito comentário de grande operacional:

– Barítono, lembras-te daquela coisa das aulas da Química? Barítono ficou com cara de ponto de interrogação. O que teria a química a ver com o assunto?! Parco continuou:

– É curioso, é a Lei da Conservação da Massa do Lavoisier, lembras-te disso?

Barítono já não se lembrava nem do Lavoisier nem da Lei, e até estranhou que Parco reportasse à Química, uma Lei com tal nome. Para ele, uma Lei da Conservação da “Massa”, só podia ser uma Lei da Economia, e nunca da Química. Mas enfim, nova cara de ponto de interrogação desafiando Parco para que desenvolvesse. E ele assim o fez:

– Barítono, o Lavoisier dizia: “ Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Ora, não vamos deixar que tanta desgraça nos derrote e nos abata. A Lei, o que nos diz é simples: Se o Amuado se zangou por perder aquela “massa” toda, tal significa que alguém vai ganhar aquela “massa” toda. Só temos que seguir-lhe o rasto, saber quem a vai ganhar, pedir ajuda, ou em caso de sovinice, apresentar honorários por serviços prestados.

Barítono teve um brilho fugaz no olhar. Sim, de facto tinha lógica. Era uma via brilhante de contra-ataque. Grande economista, o tal Lavoisier. Até se sentia mais aliviado. Há muitos anos que conhecia Parco, e já sabia que ele produzia planos à velocidade do som. Normalmente aproveitava 3 em cada 10, mas este pareceu-lhe particularmente coerente, lógico, útil e bem pensado. Pelo que, foi dizendo:

– Parco, como está a minha agenda para esta semana? Parco, rapou do tablet, colocou a password que lhe deu acesso à zona dos dados mais secretos e sensíveis, dedilhou duas ou três páginas no écran e foi respondendo:

– Tirando aquelas visitas de circunstância, quatro inaugurações, ir almoçar com a tróika que aterrou de novo, reunir com o Acabado na quinta, até está uma semana pouco carregada.

– Pois bem, disse Barítono. Telefona ao Fernandinho Aguenta, e convoca-o para uma reunião. Ele vai ter que nos ajudar se quiser ficar com o Banco do Espírito Bom. Marca para sexta-feira às 23h, hora em que os jornalistas já estão meio assolapados nos digestivos a caminho das docas. Só mais uma nota: que entre pela porta do cavalo e que venha de táxi. Ele aguenta bem uma noite sem motorista e carro de serviço.

– Parco, sorriu de tal forma que até a barbicha se agitou. Estava contente e foi dizendo:

– Ai aguenta, aguenta!…

Lisboa, 29-10-2014coelho

UM COMENTÁRIO DO PROFESSOR PARDAL DE SOUSA

O domingo já ia tardio, o Outono batia à porta e a meteorologia não ajudava. A água escorria pelas sarjetas depois de chuvadas assanhadas, e o vento, esse, assobiava um tanto. As famílias tinham-se espreguiçado e dispensado os passeios pelos centros comerciais. Era hora do comentário do Professor Pardal de Sousa.marcelo

– Boa noite, Professor Pardal de Sousa, que tal começarmos hoje pelos livros?

– Ainda bem que o diz, porque temos muita análise a fazer. Vejamos: “As feiras das miudezas em Alquerubim”, grande obra sobre o funcionamento dos mercados. À atenção da Ministra Luisinha Queque, por causa das taxas de juro da dívida. “ As leituras de adormecer do Mago Gaspar”. Este é biográfico: conta vários jantares com a Tia Ângela, e de como ele conseguiu entrar no FMI sem fazer provas de avaliação. Delicioso. Mas temos mais: “ Portugal e a produção de cereja na revolução do pastel de nata”. Este é um excelente manual de empreendedorismo: como criar grandes negócios e aumentar assim as exportações dos produtos agrícolas. À atenção de vários ministros: Santinha Cristas por causa da agricultura, Sério de Lima, por causa da indústria e até de Nuno Gralha, para que obrigue a que seja de leitura obrigatória no ensino secundário de modo a que os jovens não emigrem e se dediquem à cereja e ao pastel de nata. É a tal imagem da cereja no topo do bolo. E Pardal de Sousa sorriu, vaidosa e narcisicamente, da sua própria sagacidade.

– Professor, mas então essas ideias não vão contra os conselhos do Primeiro-Ministro que aconselhava os jovens a emigrar? – Inquiriu a Tia Judite, a talhe de foice.

– Quer dizer, vão, mas não vão. Vão, se tivermos em conta o período TROIKA I. Nessa altura, o PM estava certo porque tinha que mandar os jovens para fora melhorar as estatísticas do desemprego. Mas agora já estamos no período TROIKA IV, em que o que interessa é diminuir as importações para dizermos que a balança comercial está equilibrada. Como vê está tudo certo e coerente.

– Muito bem, Professor, passemos então às perguntas dos espectadores. A primeira, do espetador João Amargo, é a seguinte: Porque será que o Dr. Calvo Bento, acabou por não ir para a reforma, tendo sido reintegrado no Banco de Portugal? Pardal de Sousa respondeu lesto:

– Essa questão é muito interessante e tem uma resposta óbvia: por causa do Tribunal Constitucional. A tia Judite, não estava a perceber nada, fez cara de grande espanto, e a câmara mostrou um grande plano da sua estranheza: estava de preto, solene, mas bem maquilhada como sempre. Pardal de Sousa continuou:

– Vejamos. O Tribunal Constitucional não vetou os cortes nas reformas antecipadas. O Dr. Calvo Bento ia ser altamente penalizado na sua reforma. Claro que, quando aceitou ir para o BES, achou que era para ser banqueiro e que ia lá ficar 10 anos. Afinal não era para isso: era só para assinar as atas do Novo Banco porque a MONT BLANC do Dr. Amuado Salgado tinha a tinta esgotada. Ora, como só lá ficou 2 meses, já viu o prejuízo que ia ter se fosse para a reforma? Não se pode penalizar ninguém pelo seu sentido cívico e envergadura moral, pelo que o Banco de Portugal esteve bem ao reparar a injustiça. Dou 14 valores ao Banco de Portugal.

– Muito bem. Temos agora uma pergunta de uma espetadora, Dona Mãezinha de Pinto, de Cascais. Pergunta se o ministro Crato não devia ser demitido porque o filho tinha um amigo que lhe levava a mochila quando ia para o Colégio. Como o colega ainda não tem professores no ensino público, deixou de ir às aulas, e o filho da espetadora tem que ser ele próprio a levar a mochila. Esta pergunta era mesmo de almanaque, mas Pardal de Sousa não se intimidou:

– Bem, este é um problema grave para o Ministro: a questão dos mochileiros auxiliares e o prejuízo em futuras hérnias dos estudantes aplicados. No meu entender, contudo, não é caso para demitir o Ministro porque não resolve o problema do peso exagerado das mochilas. Acho, no entanto, que o Ministro devia ter, de facto, acautelado a situação. Deixemos este caso à atenção do Ministro Paulo Gestor para que coloque as ambulâncias do INEM a transportar as mochilas com mais de 5 quilos, numa ação de profilaxia da hérnia discal dos jovens dos colégios.

– Muito bem Professor. Tenho agora uma pergunta, muito especial, vem assinada, e é do Dr. Amuado Salgado.

– De quem?! – Pardal de Sousa pigarreou, bebeu um pouco de água, e inquiriu surpreso: – Do próprio Dr. Amuado?!

– Sim, professor, e a pergunta é a seguinte: Quanto acha o professor que ele deve pedir de indeminização à ministra Paulinha de Truz pelas avarias no CITIUS, já que quer preparar a sua defesa, e como não consegue fazê-lo, está a ser caluniado e a ter prejuízos de milhões em cada dia que passa.  Para esta, Pardal de Sousa, hesitou ligeiramente, mas lá foi debitando, apesar de o fazer já com menos fluidez:

– Bem, antes de mais, vou fazer uma declaração de interesses: não sei se a Judite sabe mas já fiz bodyboard com o Dr. Amuado e bebi várias caipirinhas no iate dele a caminho de Saint-Tropez. Posto isto, eu diria que há motivo à indeminização por perdas, de acordo com o princípio in dúbio pro reu. Como o Dr. Amuado, ainda não foi julgado é presumivelmente inocente, e como está a ser acusado antes do tempo, deve ser ressarcido de acordo a quantificação material dos danos. Só pelos estragos com imobilização do iate, estimo que 1 milhão por dia não seja exagerado.

– Professor, mas isso é muito dinheiro! – Clamou a Tia Judite. Como vai o Estado poder pagar tudo isso se tem um défice enorme e não tem dinheiro para a saúde nem para a educação? Pardal de Sousa tinha a solução na manga:

– Judite, o Estado pode sempre devolver a caução de 3 milhões que o Dr. Amuado teve que largar, para poder andar cá fora a preparar a sua defesa. Devo notar que, se o Dr, Amuado fosse preso e levasse os documentos para a Carregueira era muito pior, porque podiam ir cair nas mãos de carteiristas e quejandos, além da despesa adicional em que o Estado teria que incorrer fazendo obras na cadeia, para poder receber tão ilustre visitante. E sorriu outra vez, vaidoso da sua notável clarividência.

– Muito bem, professor. Vamos agora aos temas da semana. E o grande tema é o Orçamento do Estado para 2015. O Governo aplaude. A oposição critica. O Presidente da República bate palmas enquanto assobia para o ar. E o professor? O que nos diz? Vai haver ou não descida de impostos? Pardal de Sousa, até se sentiu mais leve. Para esta, tinha um bloco inteiro cheio de notas:

– Podemos dizer que os impostos vão descer na medida em que os impostos vão subir! A Tia Judite, mais uma vez com ar intrigado, não estava a perceber nada, até porque o seu forte não era a fiscalidade. E mais uma vez o seu espanto foi captado num grande plano. E prosseguiu Pardal de Sousa:

– Eu explico: este é o orçamento mais criativo desde o 25 de Abril, porque os orçamentos do Estado Novo eram sempre previsíveis e sem chama, já que antes de serem conhecidos já estavam aprovados por unanimidade. Uma sensaboria. Este não, este é criativo, inspirado e constitucional.

– Está bem professor, mas como podem os impostos baixar na medida em que vão subir?! Pardal de Sousa estava deliciado com o espanto da Tia Judite:

– Então não vê? O Governo, promete que diminui os impostos em 2016, mas só se os aumentar em 2015! É de mestre. O Governo tirou um Coelho da cartola.

– Professor, mas então Governo paga a diminuição dos impostos com o Coelho ou com a cartola?

– Ó Judite, o Governo paga a crédito, fica a dever, paga com a cartola mas só depois de a encher. Quer-me parecer que quem vai ter que pagar é o Abrenúncio Costa, se lá chegar. É de mestre. Dou 16 valores ao Barítono Coelho e 18 valores à Luisinha Queque.

– Mas professor, o Governo diz que os impostos não sobem, e que vai reduzir os impostos em 2016 se a receita do combate à evasão fiscal, subir…

– Ó Judite, você distingue um Euro cobrado em IVA, de um Euro cobrado por combate à evasão?!  Você não vê que é de mestre?! Só se os Euros forem marcados, como nas cartas dos batoteiros profissionais de poker é que os contribuintes vão receber o tal crédito de imposto!

– Professor, temos mesmo que acabar. Quer deixar então algum conselho aos cidadãos, de modo a que se possam preparar para o ano fiscal de 2015?

– Claro, Judite. É muito simples. Que não paguem impostos, que não cumpram os prazos, que não peçam faturas. Aí a Tia Judite não conseguiu conter um grande espilro. Toda ela era um grande ponto de interrogação, mudo e a cores. Pardal de Sousa, sorria, e prosseguiu:

– Se os contribuintes se portarem bem e cumprirem, não há evasão fiscal, logo não há desagravamento de impostos. Se fugirem, se forem relapsos, se não denunciarem, então o fisco aperta os faltosos, e aumentando a receita por combate à evasão tem que devolver o bolo cobrado aos contribuintes! Logo, o melhor é mesmo não pagar a tempo e horas, e receber de volta depois de se ter pago. É um pagamento de faz de conta. Desculpe, Judite, mas este orçamento, é tão criativo que é um incentivo à fraude e à evasão fiscal.

– Professor Pardal de Sousa, mas isso é absurdo! Qual o objetivo de uma engenharia dessas?

– Ó Judite, ainda não viu? É de mestre. Quando rebentar a bronca, quem vai ter a bomba nas mãos já não é o Barítono Coelho. É o Abrenúncio Costa. Ele que resolva!

CRÓNICA DE UM ORÇAMENTO ANUNCIADO

conselho_ministroBarítono Coelho olhou em volta, para a grande mesa em forma de ferradura, polvilhada de estações de trabalho SUN as quais, apesar de obsoletas, ainda iam cumprindo o seu papel. Foi contando as cabeças, lápis azul afiado em riste, e concluiu que estavam todos, os ministros. Não havia faltas a marcar. E foi dizendo grave:

– Meus senhores, está aberto o Conselho de Ministros, com um único ponto na ordem de tra­balhos: aprovar o Orçamento Geral do Estado para 2015.

Paulo Tropas levantou o dedo de imediato para pedir a palavra e foi dizendo, suave, mas com alguma rispidez encoberta na voz:

– Sugeria ao colega que a ordem de trabalhos fosse discutir e aprovar o Orçamento e não ape­nas aprovar o Orçamento. A ser só para aprovar era melhor termos reunido por teleconfe­rên­cia como fizemos no Conselho de Ministros que liquidou o Banco do Santo Espírito. E ele­vou um pouco mais o tom, martelando as vogais: – Alguma vez temos que começar a cortar nas gorduras do Estado.

Todos se entreolharam, tentando medir para que lado haviam de cair, e um silêncio embara­çoso percorreu a sala. Até que, uma voz feminina quebrou o impasse. Era Luisinha Queque:

– Colegas, não temos tempo para discutir, as contas estão feitas, os cortes estão sabiamente disfarçados, e não posso gastar nem mais um cêntimo. São as ordens que tenho vindas da Flan­­dres. Ponto. E empertigou o nariz olhando todos e cada um à vez e terminando em Tropas. Este então respigou, como se impulsionado por uma mola:

– Colegas, eu tenho a minha face a salvar. Prometi que baixava os impostos. Prometi que subia as reformas. E desculpem: eu não me quero suicidar nas eleições, até porque não sei fazer mais nada além de campanhas, visitas e almoços com investidores estrangeiros. Para quem é neófito nas lides políticas e eleitorais (e olhou de soslaio para Luisinha Queque), não custa continuar a penalizar os eleitores. Não alinho nisso. Ponto.

No lado direito da mesa, ao lado de Tropas, Sério de Lima esboçou um sorriso enigmático. Esperava-se uma palavra de Barítono e esta surgiu:

– Bem, de facto não temos tempo, mas vamos fazer como na Assembleia da República. Eu vou fazer de Assunta DeLux, e vou dar um minuto a cada um para comentar a proposta de orça­men­to. E como por artes mágicas, ei-lo de cronómetro em punho. Quem começa?

Jurídico Maduro antecipou-se a todos e foi debitando: – Bem a Europa não nos dá a folga insti­tucional que os Tratados deviam prosseguir no âmbito de uma juridicidade mais solidária, pelo que devíamos seguir uma postura noemática de reivindicação. Como o meu ministério está bem, nada mais tenho a comentar e por isso em relação ao orçamento, I’m out.

Barítono Coelho ficou meio confuso, e foi inquirindo na passada: – Isso significa que o colega não vai aprovar o orçamento?! Jurídico foi lesto a esclarecer: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que estou fora da discussão porque não há nada a discutir.

Então, Miguel dos Fogos antecipou-se e disse: – Eu por mim, que tive um verão nublado e chu­voso, que poupei uns milhões largos em helicópteros e corta-fogos, queria pedir para desviar as verbas poupadas para as polícias, e para poder comprar tinteiros para as impressoras das esquadras e para novos fardamentos. Como não aumento a despesa tenho todo o direito a essa alteração. I’m in.

Barítono Coelho ficou de novo confuso, e foi inquirindo na passada: – Isso significa que o cole­ga não vai aprovar o orçamento?! Miguel dos Fogos foi lesto a esclarecer: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que estou dentro da discussão e que quero gastar nas polícias o que poupámos nos fogos. Ainda estava com o fogo entaramelado na língua e já Luisinha Queque retorquia:

– Colegas, eu não vou permitir desvios. Devo anunciar que o orçamento já está aprovado pela Tia Ângela, pelo Mário Bazuca e pela Cristina Hermès. Não sei porque estamos a perder tempo. Vai-me dar uma trabalheira passar as verbas dos fogos para as polícias e não sei se a folha que o Mago Gaspar me deixou o permite.

Aí Barítono, num gesto de autoridade apaziguadora, interrompeu: – Colega Luisinha, este seu minuto já acabou, veja lá o que pode fazer na folha de cálculo. Quem é o próximo? Avançou Santinha Cristas:

– Bem, no meu ministério está tudo a correr bem. Muitos jovens agricultores têm despontado e nem temos tido que importar estudantes para as vindimas. A azeitona saiu carnuda e nutrida e o vinho tinto tem sido vendido aos árabes em toneis que seguem as normas de qualidade ISO9001. O setor está moderno e florescente. Devido aos dotes negociais do Paulo Tropas te­mos trocado pipas de vinho do Douro por barris de petróleo. O orçamento está escorreito, mas temos que baixar os impostos. Por isso, I’m in.

Barítono Coelho ficou outra vez meio confuso: – Isso significa que a colega não vai aprovar o orçamento?! Santinha Cristas, suave e aveludada, respondeu prontamente: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que não quero mais dinheiro do orçamento. E terminou, desta vez enfática: – Mas que se devem baixar os impostos, lá isso devem!

Luisinha Queque revirou os olhos e empinou o nariz: – Colegas, quero que notem bem que não é comigo que estão a brincar: não irritem a Tia Ângela!

Barítono olhava para o teto como se procurasse uma ideia salvadora quando Sério de Lima se perfilou. Normalmente era ouvido com atenção redobrada. – Caros colegas, eu vou ser breve neste meu minuto. A indústria está a erguer-se, mas as exportações deixaram de crescer. Se as empresas não vendem, vão despedir, cobramos menos impostos, pagamos mais subsídios de desemprego. Lá se vai a consolidação orçamental e temos que pedir ao Engº. Sócrates para chamar de novo a Troika. Assim, só vejo uma solução: aumentar o consumo interno para as empresas venderem mais. Logo temos que baixar os impostos. Por isso, I’m in.

Barítono Coelho, desta vez teve que ajeitar os óculos aos quais ainda não se habituara bem e que, por vezes, lhe resvalavam pelo nariz abaixo: – Isso significa que o colega não vai aprovar o orçamento?! Sério de Lima, martelando as sílabas: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que o desemprego nos estraga os números do deficit e que o Tribunal Constitucional não nos deixaria nunca abolir o subsídio de desemprego. É por isso que se devem baixar os impostos!

Desta vez Luisinha Queque considerou a provocação séria de mais, rapou do tablet onde trazia a folha de Excel do Mago Gaspar, executou meia dúzia de fórmulas de rajada e vociferou:

– Não há folga para baixar impostos. Qual foi a parte que não percebeu? Quero informar o Sr. Ministro Sério de Lima que não haverá aumento de despesa com subsídios de desemprego se o consumo interno não subir. A solução que encontrámos é simples: processamos os subsídios mas como não há dinheiro pagamos em Títulos do Tesouro a resgatar no prazo de 20 anos. Como os desempregados não sobreviverão tanto tempo, nada haverá a pagar de imediato pelo que o déficit não será afetado. A isto se chama gestão criativa da despesa, Sr. Ministro. E empertigou mais uma vez o nariz olhando um Ministro atónito, branco e sem fala.

De repente, o ambiente na sala tornou-se mais pesado. Barítono Coelho batia com o lápis na mesa. Tropas não levantava os olhos das folhas A4 que sempre o acompanhavam: ainda não era hora de avançar. Até que Barítono Coelho prosseguiu: Quem mais se quer pronunciar? Avançou Paulo Gestor:

– Bem, a saúde não está bem. Não há médicos, não há enfermeiros, não há pensos, não há dinheiro para os remédios de ponta, e o pior mesmo é que já começa a não haver dinheiro para pagar aos privados. Os hospitais estão em colapso, e temos de contratar mais 1000 médicos cubanos. Só vejo uma solução: ou privatizar os hospitais todos e perder as eleições, ou aumentar os impostos para pagar a saúde pública. Por isso, I’m In.

Barítono Coelho acorreu com presteza: – Isso significa que a colega não vai aprovar o orça­mento?! Paulo Gestor nem hesitou: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que temos que aumentar a despesa com a saúde de imediato, pelo menos até às eleições, e ganhando-as podemos então privatizar o que resta do SNS à vontade.

Desta vez, Luisinha Queque sorriu deliciada. E de novo o silêncio percorreu a sala. Olhavam todos para os écrans das estações de trabalho. Barítono, olhou para o cronómetro e, de repente ouviu-se uma voz. Era Paulinha de Truz:

– Bem, eu tenho que reconhecer que a Justiça parece que foi vítima de mau-olhado. Tudo tem corrido mal e devo informá-los que temos que atuar depressa: Preciso de tribunais novos, de substituir contentores, de mais funcionários judiciais, e mais que tudo de um CITIUS novo. Só vejo uma solução: ou privatizar os tribunais todos e perder as eleições, ou aumentar os impostos para pagar a Justiça. Por isso, I’m In.

Barítono Coelho brusco, mas ainda assim em tom compreensivo: – Isso significa que a colega não vai aprovar o orçamento?! Paulinha de Truz balbuciou: – Colega Barítono, claro que vou aprovar. Só quis dizer que temos que aumentar a despesa com a Justiça de imediato, pelo menos até às eleições, e ganhando-as podemos então privatizar os tribunais, e se calhar até o próprio Tribunal Constitucional.

Todos se entreolharam apreciando o brilhantismo da ideia e uma onda de simpatia gerou-se na sala em torno da tão criticada ministra Paulinha. Luisinha Queque sorriu mais uma vez. E de novo o silêncio os rodeou. Até que nova voz se levantou. Era Nuno Gralha:

– Bem, a educação não está mal porque até poupámos em ciência, em professores, em bolsas, em escolas, já que um país pobre não pode dar-se a tantos luxos. Demos um grande contributo para o ajustamento. Reconheço que falhámos na formação da matemática básica, mormente na aplicação das fórmulas para colocar os professores. Mas isso não é mais que um pequeno detalhe do processo. O MEC não precisa de mais dinheiro e, colega Barítono, escusa de me perguntar se vou aprovar o orçamento, porque vou mesmo. Como disse a colega Luisinha nem sei porque perdemos tanto tempo a discuti-lo, pelo que I’m out.

Barítono Coelho, rodou o lápis entre os dedos e foi dizendo: – Alguém mais se quer pronunciar? Paulo Tortas sopesou o molho de folhas A4 e levantou o dedo antes de começar. Levantou-se da cadeira mesmo. Gostava de olhar a plateia de cima para baixo:

– Colegas, não vim para aqui discutir as fórmulas da colega Luisinha Queque e do Mago Gaspar. Num Conselho de Ministros deve-se discutir a política, na política e pela política – disse lapidar. E passou para nova página A4, continuando: – Qual deve ser o objetivo de um político em democracia? Ganhar eleições. E que hipóteses temos agora de derrotar o Abrenúncio Costa? Nenhumas se não baixarmos os impostos. E que hipóteses teremos de continuar a privatizar o que ainda resta se não ganharmos eleições? Nenhumas. Pelo que – e virou nova página A4 – aqui quero deixar irrevogavelmente expresso que só aprovarei o orçamento se reduzirmos o IRS, se aumentarmos as pensões mais baixas, se acabarmos com os cortes da função pública, e ainda – e fez uma pausa para criar suspense na sala – e ainda, se aumentarmos o salário mínimo para 800€. Tenho dito.

Barítono Coelho, estava lívido. Pediu um copo de água que bebeu tão sofregamente que quase se engasgava. A sala entrou em grande burburinho. Luisinha Queque colocou a carteira a tiracolo e fez menção de se levantar. Barítono travou-a e deu 3 murros na mesa, tão violentos que o monitor da SUN ia tombando na alcatifa. Todos se calaram. Luisinha antecipou-se a Barítono e disse:

– Quer-me o Sr. Ministro de Estado explicar onde vai buscar o dinheiro para isso tudo? E os olhos esverdeados chispavam lume.

– Tropas, calmo, e com o traquejo de velha raposa de múltiplos debates foi respondendo:

– É simples. O Abrenúncio Costa foi o bilhete da lotaria que nos saiu. Se tivéssemos que enfren­tar o Tó Zé Queixinhas, era tudo fácil e não tínhamos que abrir os cordões à bolsa. Como é contra o Abrenúncio só temos que ameaçar a Tia Ângela com as alianças à esquerda que ele vai fazer (mesmo que não vá) e com a implosão do sistema político-partidário, como já foi adiantando o Acabado Silva. Acham que não é ameaça que a assuste?

Estavam todos siderados. Ele era genial, o Tropas. Era de mestre.

Barítono coçava a cabeça, afagando a calvície nascente. O burburinho continuava. Barítono deu outro murro na mesa e disse: – Meus senhores, está encerrado Conselho de Ministros. Vamos todos para casa, meditar, e no fim-de-semana, haverá um Conselho de Ministros Extra­ordinário, sem pagamento de horas extra para dar o exemplo à populaça.

E virando-se para Parques Guedes que estava encarregue de fazer as atas e que tinha estado sempre calado a tomar apontamentos: – Olha Parques, diz para a Imprensa que o Conselho de Ministros discutiu o perigo do ébola entrar no país, concluindo que o vírus não gosta do tom de pele dos portugueses e que foi aprovada a portaria que regula as multas a aplicar aos donos dos papagaios não registados.

Palácio de São Bento, 10 de Outubro de 2014.